POESIA


DO LIVRETO: A LUZ DOS LUNÁTICOS

Um olhar apressado pode assassinar a beleza do limbo

 

A Festa do Silêncio

No lugar onde escondemos o amor
Vejo coisas que não estão lá
E ouço um milhão de trovões que se aproximam
Convidados para a festa do silêncio

 

Resistência

Às noites choro por dentro
Surdo e Silencioso
Não é um choro de fraqueza
É de bravura
Choro porque resisto a uma força descomunal
Que não tem nome nem forma
Mas é de uma beleza assustadora


Desejo

Todas as coisas que passam pela janela
Deixam o pó remexido e a recordação
Todas as coisas, vivas ou mortas
Pequenas ou grandes
Deixam o silêncio e a vontade do alcance do toque
Do alcance do olhar
E todas as janelas são portas iguais
Que abrem pra dentro de uma alma faminta
De poesias e coisas, vivas ou mortas
Alegres ou tristes
Um revés pequeno que traduz o eterno
Distante dos dedos, ao alcance do olhar
Deixou o pó remexido e o desejo
O desejo do toque, o desejo de amar


Noturno

Os instrumentos, tingidos de pó, declamam Górecki, lento e mal dito, às ovelhas fiéis que, cegas de ouvido, são guiadas pelos tilins do pastor anêmico, através de um caminho de terra, vazio, sem chão nem nada, como resplandecentes coisas tristes ao encontro do punhal ansioso de silêncio.

 

Olhos Negros

Não tente me matar com suas armas
Já me mataram antes de todas as formas
O que restou de mim agora é imortal
E sua fúria aqui terá o sabor do destempero
Todavia se insistes em dar vida ao meu fim
Morra primeiro
E me encontrará rindo n’algum canto da eternidade

 

 Sagração da Primavera

A dança dos prazeres posta à cama umedece a alvura dos lençóis com o adocicado gosto do amor. O violino que evapora do aparelho mistura-se a fumaça do sândalo e confunde os sentidos e desejos do corpo e da alma. A vela baixa esparrama o dourado penumbra pelos cantos e gemidos indizíveis. Treme o mais robusto dos nervos ao toque de tua pela nua contra a minha. Pés e pernas entrelaçados qual lenha na fogueira. Minhas mãos prezas em teu peito e tua virilha movem-se num vai e vem de ondas de mar revolto, dedos atados a carne feito moscas indefesas e incapazes de fugir do poder da teia. A boca abandona a boca, solfeja salivas no ouvido e desce pescoço abaixo deixando um rastro molhado em direção a ponta do seio que sobra enquanto tuas unhas deslizam pesadas, tatuando ranhuras em meu dorso. Não pare. Quero beber o sabor da tua essência. Abra as portas e me acolha. O que há lá fora não existe mais. A sagração da primavera está a caminho.

 

Passo Desatento

Não existe salvação, só continuação
O chão é a parte pequena da história
Não existe pecado quimera solução
Tome quietação
A chuva inunda um formigueiro
Violado por um passo desatento

Estação do Silêncio

A estação do silêncio está chegando
Percebo pela mira dos seus olhos
E pelas sombras que se formam no vazio
O descanso das canções não tardará
Sinto pelas emoções que me escorrem através dos dedos
E pela fria evaporação de meus desejos
A estação do silêncio está chegando
Minhas asas vão secar e cair
E meus pensamentos engolirão a mim mesmo


A Travessia

Depois da travessia do inverno quente, sobraram resquícios do que fui. O homem que vê agora é frase excluída dos livros da ordem. Não se assustes se falo de flores e vaga-lumes, rompi com o mundo dos homens para me tornar um. Quando, incrédula, me abraçar e colar teu ouvido em meu peito, ouvirá ecos de um coração que canta o som dos crepúsculos... E quando, incrédula, desejar o meu amor, banharei os lençóis com o sabor do encontro de todas as estações... Depois da travessia do inverno quente, sobraram cacos do meu passado. O sol e a lua ocupam agora o mesmo espaço no céu e o fogo e a água passeiam de mãos dadas pelos bosques da primavera.


Palco Cinza

Cobriram o mundo com caminhos mal iluminados
Religiões, supermercados e parabólicas
O balé dos vivos num imenso palco cinza
Não faz frio nem calor, mas o desejo ainda existe
Um banquete é servido, uma espada é enfiada
Todos têm regras para seguir e rodas para se movimentar
Um poema é escrito, um gatilho é puxado, uma placenta se rompe
É preciso correr, correr, correr...
Levantaram outra cerca, desenharam outra fronteira
Recortaram o mundo num punhado de lágrimas
Todos os sonhos acorrentados numa tela de televisão


Galhos da Madrugada

Meu estado é de conforto silêncio
Entre árvores mortas cheirando a passado
Uma estrada leva a lados opostos
Quero aquele que me apresente o que não se conhece
Onde a ousadia ainda exista viril
E o medo não passe de um desejo
Mas quem se importa?
Meu equilíbrio se esconde por trás da razão
E minha serenidade é feita de caos
Quem se importa?
Sou só um lunático que vive nos galhos da madrugada


A Nuvem

Onde meu coração sangra e o seu estanca
Onde meus olhos vêm e os seus cegam
Onde meus dedos tocam e você foge
Onde meus lábios gritam e os seus fecham
Por quantas estações?
Onde quero voar e você pisa
Onde quero sentir e você protege
Onde quero riscos e você a cadeira
Onde quero lembrar e você esquece
Por quantas estações?
Onde sou pequeno e você o mundo
Onde sou loucura e você a razão
Onde sou eu mesmo e você o que dizem
Onde sou o pecado e você o perdão
Por quantas estações?
Vou morar naquela nuvem antes que ela chova

 

O Abutre

Amanhã me tornarei um abutre
Penas, bico e o céu infindo para navegar
Morre o predador nasce o lixeiro
Morre o que mata para comer
Nasce o que vive dos restos dos mortos
Amanhã me tornarei um abutre
Mas agudo é o balé da vida
Se os outros não matarem
Eu também não sobreviverei


O Vazio

- Onde está você?
- Em algum lugar da existência.
- Onde está seu coração?
- Bem longe do meu peito.
- Onde estão suas crenças?
- Abandonadas no passado.
- Onde estão suas dúvidas?
- Esperando o dia raiar.
- Onde estão seus amigos?
- Gritando coisas que não ouço.
- Onde está sua alma?
- Rabiscada numa folha de papel.

 

Fragmentos de mim

Pra falar do mundo, prefiro não acordar
Pra falar da vida, prefiro a beleza do avesso
Pra falar do passado, prefiro sorrir
Pra falar do futuro, prefiro esquecer
Pra falar do presente, prefiro o eterno
Pra falar do amor, prefiro ouvir Preisner
Pra falar de Deus, prefiro calar os olhos e a boca
Pra falar dos homens, prefiro os bichos
Pra falar de mim mesmo, prefiro que se afaste


Nostalgia

Minha nostalgia é um sem-fim
E o inverno está apenas começando
Todos os monstros estão soltos aqui embaixo
E dos muros florescem arames farpados
Corro para onde não sei
Oro preces apressadas
Os fantasmas descansam a noite
Mas acordam famintos pela manhã



Nova Experiência Divina

Um dia eu acordei e não havia mais chão sob os meus pés e nem céu sobre a minha cabeça. Não havia cores ou formas à minha volta, apenas o vazio explícito. Não havia o que tocar. Não havia caminhos para seguir. Não havia horizonte para enxergar. Nem silêncio e nem ruído. Nem doença e nem saúde. Nem noite e nem dia. Não havia sentidos para sentir, amor para amar ou ódio para odiar. Perguntei a um anjo de olhar incolor o que acontecera e ele respondeu que era uma nova experiência divina. Perguntei se era bom ou mal e ele disse que bem ou mal não existiam ali. Perguntei então quanto tempo aquilo duraria, ele me respondeu que o tempo também não existia mais, fez um gesto com as asas e foi embora. Eu fiquei.


A serpente já viveu demais
Mas não lhe deram lugar pra descansar